(Des)tratamento na República: Simplificação a Chicago

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Decifra-me ou eu te devoro: indagaria a esfinge!

Na verdade, neste texto, quem indaga é você, leitor. Certamente, já deve estar com uma pulga atrás da orelha pela ausência do acento indicador de crase no a antes de Chicago. Mais: deve estar pensando sobre o que isso tem a ver com o citado (des)tratamento nesta quase (res)pública e pátria tão (des)amada, chamada Brasil.

Acalme-se! Já explico.

Você já deve ter tomado nota do Decreto 9.758, publicado recentemente, sobre formas de tratamento e de endereçamento nas comunicações oficiais do Governo e com o Governo. Em resumo, esse decreto, que possui embasamento jurídico constitucional, regulamenta como deve ser a forma com que aqueles que trabalham no Governo Federal e em empresas públicas etc devem trata-se, bem como a maneira com que o cidadão deve referir-se aos representantes públicos (incluindo comunicação ao presidente da república).

A ideia do Decreto é, aparentemente, muito eficaz: é preciso simplificar para dar celeridade; é preciso acabar com a maioria dos pronomes de tratamento, pois eles são um entrave ao desenvolvimento do País; é preciso eliminar as gravatas pronominais e dar um tom mais moderninho à forma de agir do Governo. Enfim, é preciso não precisar de formalidade.

O Decreto veda a utilização de pronomes como vossa excelência, excelentíssimo, vossa Senhoria (de secular tradição nas comunicações oficiais) e até mesmo a utilização do axiônimo doutor (que nem é pronome de tratamento). Como eu lhe disse, a ideia parece ótima. Nós (você e eu) vivemos em um país em que o termo burocracia desvencilhou-se completamente da etimologia e da percepção weberiana originais; em que o governo passou a ser inimigo do cidadão empreendedor e produtivo; em que a ataraxia, fundamentada na não observância ao princípio (res)publicano, tornou-se um axioma social.

Mas…. o diabo mora nos detalhes… e é sobre isso que lhe quero contar.

É dever de todo linguística, como eu, apontar a você, cidadão brasileiro (como você e eu) os problemas que esse bendito decreto pode gerar:

O primeiro é muito óbvio e trata-se de questão de competência jurídica. O Decreto atinge apenas aqueles que estão sob a égide da União. Nasce aqui uma aberração: O presidente da República terá que se dirigir ao governador do Tocantins, em cerimônias oficiais daquele Estado da Federação, como vossa excelência, já que o Manual do Governo do Tocantins, que não é subordinado ao Decreto, exige a utilização dos termos vossa excelência e excelentíssimo para qualquer um que se refira ao governador. Ou seja, faltou política de Estado e sobrou política de Governo! Faltou combinar com os russos!

O segundo é decorrência do primeiro. O Poder Judiciário, os Tribunais de Contas, as Defensorias e até a Ordem dos Advogados do Brasil não possuem nada com esse decreto. Assim, estranhamente, em um evento de um dos Tribunais Superiores, o presidente da República será chamado de Excelentíssimo pelos servidores e membros. A vedação de pronomes aqui simplesmente não conta.

O terceiro (e mais grave, na minha percepção) é o caráter puramente imitativo do Governo Brasileiro à lógica de tratamento do Governo Estadunidense. Lá, o presidente da República é chamado de senhor presidente, como quer o Decreto Brasileiro. Ocorre que lá as tradições são outras; a cultura é outra. É preciso entender, de uma vez por todas, que o Brasil não são os Estados Unidos de segunda categoria. É preciso entender que nós devemos ser o Brasil de primeira categoria. Eles, os estadunidenses, olham-nos sob ótica da desconfiança de quem é copiado contumazmente. Eles inventam. Nós apenas copiamos, fadados a um darwinismo social e histórico de eternos colonizados, mesmo que já manumissos.

Assim, O (des)tratamento na República é notório. A simplificação a (sem acento de crase mesmo) Chicago, também.

* Carlos André Pereira Nunes é professor, advogado e linguista brasileiro.

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