As regras do jogo mudaram e as maiores empresas de varejo do mundo estão ameaçadas. É o que diz um estudo da consultoria Bain & Company, que concluiu que as varejistas nos Estados Unidos responsáveis por quase 30% dos lucros e 40% das vendas do setor estão atualmente em risco de serem comprados por competidores ou falirem, a menos que possam lidar com suas deficiências em escala, inovação e compreensão do consumidor orientada por dados.
Mais do que o tamanho das empresas e sua presença regional, a inovação e presença digital passaram a ser essenciais. Gigantes como a americana Amazon e a chinesa Alibaba e startups como a Rappi podem mudar o cenário, tanto pelo impacto da tecnologia quanto pela capacidade de investimento e de comprar participação de mercado.
“O que estamos vendo hoje é que as mudanças estão acontecendo mais rápido. Nossa esperanças é que as empresas reajam e criem novas estratégias, estratégias diferentes e diferenciação ao entender melhor o consumidor”, afirmou Marc-André Kamel, sócio do escritório de Paris e líder global da prática de varejo da Bain & Company.
Ao lado de Alfredo Pinto, presidente da consultoria na América do Sul, ele conversou com EXAME sobre os riscos e oportunidades do varejo nos próximos anos. Confira a entrevista abaixo.
Exame – A pesquisa da Bain mostra os riscos que as principais varejistas enfrentam hoje. Quais são as soluções para esse problema?
Marc-André Kamel – Nas últimas décadas, a maneira de vencer no varejo era ser o primeiro ou o segundo maior player em uma região, que venciam a guerra dos preços. Essa era a receita. Hoje, isso ainda é importante, mas já não é o suficiente.
As empresas, nacionais e internacionais, precisarão criar inovação rapidamente, acumular e usar dados para fidelizar o consumidor e reduzir custos. Elas precisam investir mais e, para isso, precisam de escala, que será cada vez mais importante. Podem conseguir escala com parcerias, fusões ou aquisições.
No Brasil, os maiores varejistas no Brasil são nacionais. Walmart tentou conquistar o mercado brasileiro, sem sucesso. Quão importante é ser uma empresa nacional e ter uma presença local para brigar com as gigantes globais?
Marc-André Kamel – Se você não estiver nas primeiras posições em uma região, mesmo que esteja em todo o mercado nacional, não vai ganhar dinheiro. Ser o líder local ainda é importante.
As “joias regionais”, como são chamadas as pequenas empresas menores e com forte presença local, devem se manter. Elas trazem algo particular ao consumidor, em termos de serviço ou diferenciação. A grande pergunta é se elas podem continuar para sempre ou se alguma outra empresa disruptiva entrará em seu caminho.
As expectativas dos consumidores estão explodindo. Eles querem conveniência, qualidade, preço, possibilidade de comprar online, etc. Todos os varejistas, se quiserem continuar a competir, precisarão investir, o que não será possível para as empresas menores.
Sempre é difícil entrar em um mercado, já que as empresas locais conhecem o consumidor. A Amazon, por exemplo, teve dificuldades na França durante anos. Mas a empresa realizou mudanças, encontrou o caminho certo, implementou o Prime e começou a deslanchar. Em três anos, se tornou a líder no mercado online e está capturando a participação de outros players. Eles ainda precisam lutar para alcançar a liderança, que é essencial para alcançar o lucro.
Como convencer varejistas que eles precisam ser mais que apenas supermercados ou lojas de departamento e investir mais em tecnologia?
Marc-André Kamel – As varejistas precisam mudar porque o consumidor está mudando. O consumidor quer preço, qualidade, diferenciação, experiência, sustentabilidade… Tudo isso custa. Além disso, requer que as empresas tenham capacidades diferentes. O varejo não é mais apenas comprar e revender por um lucro, não é mais expor o melhor mix. É sobre conhecer o consumidor com dados, ter omnicanalidade, entrar em novas áreas. Há novos desafios, como as entregas de última milha.
O maior desafio não é ter a melhor tecnologia, porque isso dá para comprar, mas sim trazer as pessoas mais capazes. As varejistas, grandes empresas tradicionais, precisam ter benefícios atraentes e uma cultura acolhedora para atrair esses talentos, que preferem ir para o Vale do Silício ou em startups.
Em relação a essas mudanças e ao crescimento do comércio eletrônico, uma das consequências mais visíveis foi o fechamento de diversos shoppings centers nos Estados Unidos. Que outras consequências podemos ver?
Marc-André Kamel – Essa questão não é tão preto no branco. Os shoppings centers em áreas menos atraentes estão com dificuldades. Mas aqueles de alta qualidade estão bem, estão aumentando sua proposta de valor, criando experiências, usando os espaços de maneiras diferentes.
Outra mudança é em relação a forma de consumo das pessoas e do que significa conveniência, que até agora era uma questão de proximidade, de ter uma loja por perto. Não mais: conveniência é ter acesso aos serviços 24 horas por dia e poder comprar de qualquer dispositivo. As pessoas optam por pagar a mais para ter mais conveniência.
No setor de alimentação e supermercados, por exemplo, o mercado de pratos prontos para consumo é o que mais cresce, apesar de serem mais caros. Se não acompanharem essas tendências, os supermercados podem perder, nos próximos anos, 10% a 20% de suas receitas para restaurantes e aplicativos de delivery, como iFood e Rappi.
Algumas dessas startups estão inclusive levando à criação de “dark kitchens”, ou cozinhas voltadas especialmente para o delivery. Também estamos vendo a tendência do delivery de tudo. Essas startups ainda não estão gerando dinheiro, mas estão crescendo. As empresas irão, em um primeiro momento, perder dinheiro, mas lutam para ser o player número um desse novo mercado.
As startups estão em crescimento e dispostas a comprar market share, mas sem lucro. Quando essa conta vai começar a ser um problema?
Alfredo Pinto – É muito caro, para as varejistas, não participar desse mercado, porque irão perder o consumidor para o concorrente. A gente vê muitos clientes se debatendo com essa questão, até que ponto é interessante dormir com o inimigo. De um lado, a parceria com startups agregadoras é mais uma forma de vender e diversificar as receitas. De outro lado, a varejista se distancia dos clientes.
Uma das ameaças, que já começa a acontecer, é a do private label, o produto desenvolvido pelo aplicativo de delivery. Ao comprar um shampoo, não faz diferença se vai comprar do varejista A ou B. O mesmo com hambúrgueres ou outros produtos.
É difícil negar essa dinâmica e competir com ela. Essas startups chegaram a valores bilionários, dispostas a ser agressivas para conquistar os consumidores, com vouchers e descontos. O desafio para as empresas é como participar dessa tendência e continuar mantendo um relacionamento com o cliente. Por isso, ter um sistema CRM, de relacionamento com os consumidores, é essencial.
O que as brasileiras estão fazendo em relação às gigantes internacionais?
Alfredo Pinto – O que vemos muito é uma ambição brasileira de replicar ecossistemas, com exemplos mundiais, com Tencent e Alibaba na China, a americana Amazon, por exemplo. Para cada um desses gigantes há candidatos brasileiros que querem copiar o modelo.
Há os marketplaces, como a Amazon, que atuam em diversos segmentos e têm frequência de compra alta, um bom ponto de partida para um ecossistema. Há as varejistas alimentares, como o Walmart. Os serviços de última milha, como Rappi e Uber Eats, estão agregando mais serviços para clientes e fornecedores. Há o modelo de sistemas de pagamento, como Alipay. Por fim, estão os aplicativos comunicadores, como o WeChat, da Tencent. Estamos saindo de uma crise econômica e avançando em reformas estruturais. As empresas brasileiras têm tudo para crescer, se investirem em tecnologia e dados.
A matéria foi originalmente publicada na Exame.com