*** Por Haikal Helou
O ano de 2003 estava apenas começando e já prometia ser repleto de emoções. Comemoraríamos o primeiro aniversário do meu primogênito, uma guerra no Iraque parecia inevitável com todos temendo o que poderia se tornar a terceira guerra mundial e a Unimed Goiânia tinha decidido que, a partir daquele ano, novos cooperados só entrariam através de concurso. A ideia do concurso não me preocupava, toda a vida adulta tinha sido assim: faculdade, pós-graduação, validação de diploma nos EUA, residência médica. Porém, havia um número grande de colegas disputando as mesmas vagas e a perspectiva de não conseguir entrar gerava, sim, ansiedade. Naquela época, era inimaginável se desenvolver na profissão sem estar na Unimed. Ela era o nosso escudo contra a exploração do trabalho médico, nos trazendo pacientes, nos pagando em dia com valores justos, nos dando um senso de pertencimento.
Infelizmente, circunstâncias da vida foram me afastando do consultório e centro cirúrgico e me aproximando da gestão do único negócio da minha família, um hospital. Relutei muito no início, tinha me preparado a vida inteira para ser o que eu era, um cirurgião geral, operar, salvar vidas, e agora estava metido em reuniões, discussões financeiras, fornecedores e operadoras. Buscando entender esse mundo, me aproximei de outros médicos e donos de hospitais que passavam pela mesma situação e viviam as mesmas angústias e aí a vida deu uma guinada.
Reuniões passam a ser o nosso trabalho. Agora, o assunto é sinistralidade, diárias e taxas, protocolos, indicadores. Não mais bisturi, pinça e tesoura. Ato contínuo, a forma como enxergamos o mundo muda. O sofrimento é grande, sonho constantemente com o centro cirúrgico, começo a pensar que não estou mais salvando vidas ou ajudando as pessoas, até me dar conta que com a boa gestão hospitalar, tornando os hospitais mais seguros, criando e adotando classificações, núcleos de segurança, protocolos de boas práticas e indicadores salvaria muito mais vidas do que poderia como cirurgião.
Muda também a visão dos colegas sobre o médico gestor. Param de nos enxergar como médicos, viramos os temidos “administradores”, aqueles que dizem não. Falta a percepção que para o paciente dele entrar em um hospital e fazer a cirurgia que é o seu ofício, milhares de coisas deverão acontecer, como a compra de equipamentos e o seu credenciamento, treinamento de pessoal (enfermeiras, nutricionistas, farmacêuticos, engenheiros clínicos…), alvarás, vigilância, glosas de contas, fornecedores …
Nessa hora, mudamos mais uma vez, viramos os “negociadores”. No início, as negociações eram muito difíceis, o desconhecimento do outro lado e a desconfiança reinavam, negociações costumavam durar até nove meses, quando se chegava a um acordo, já estava defasado. Passamos a conhecer o lado “plano de saúde “da cooperativa, lutando por preços mais baixos, sem muitas vezes se preocupar com a qualidade, enfim, se discutia preços e não valores.
Com o passar do tempo, passamos a entender que do outro lado da mesa não existiam monstros gananciosos que queriam economizar a qualquer custo, mas médicos, como nós, em um sistema altamente regulamentado e judicializado, com custos crescentes e que em algum momento, seja pelo envelhecimento da população, seja pela incorporação de novas tecnologias se tornarão impagáveis. Nessa hora, a preocupação passa a ser a sustentabilidade do sistema. A lógica é simples: se eles quebrarem, seremos os próximos, temos de cuidar de um todo, não mais apenas dos nossos hospitais.
Para piorar tudo, as coisas começam a mudar muito rápido no nosso entorno. Surgem empresas de capital aberto, com dinheiro de bolsa de valores, que trabalham somente consigo mesmas e enxergam o médico apenas como mais um empregado, pagando valores aviltantes e apostando que com a enxurrada de novos profissionais jogados todos os anos no mercado não faltará alguém disposto a fazer mais por menos. Dane-se a qualidade, a relação médico/paciente, a autonomia do profissional liberal, o que importa são apenas bons números para gerar polpudos dividendos nas bolsas de valores.
Nesse momento, volto a 2003 e vejo mais do que nunca a nossa Unimed como o porto seguro, que pode nos proteger desses gafanhotos. Não sozinha, mas junto com os cooperados e com a sua rede prestadora. Não somos diferentes como o incauto imagina, somos todos médicos cooperados com as mesmas necessidades, dores e preocupações. Desse trabalho, vem o nosso sustento, somos farinha do mesmo saco, e quem afirma o contrário quer nos dividir com propósitos obscuros.
Para que essa união ocorra, princípios básicos devem ser cumpridos:
O prestador precisa se profissionalizar, investir em gestão, buscar a todo custo a segurança do paciente. Precisa ter indicadores de resultados clínicos, eficiência, evitar desperdícios e coibir as fraudes.
O colega tem de entender que a cooperativa é dele. Não é um plano de saúde que ele pagou uma luva para entrar. Tem que entender que as pessoas encasteladas no décimo andar da nossa sede trabalham para ele e não o contrário. Precisa se inteirar sobre os números, ir às reuniões, questionar o que achar pertinente, mas também entender que não precisa de 48 exames para diagnosticar uma dengue, que não deve pedir uma tomografia computadorizada e uma ressonância na mesma consulta ou manter seus pacientes internados além do necessário por pura conveniência.
À diretoria da Unimed, que venha a percepção que não são necessários 11 diretores para fazer uma cooperativa ou empresa funcionar; que a profissionalização que ocorreu em outras grandes singulares, já passou da hora de acontecer aqui; que o dono, o cooperado, não pode nem deve esperar dias ou semanas para ser recebido e que precisamos de menos festas, viagens e eventos e mais foco no negócio, produtos competitivos e pactuados para se fazer frente à nova concorrência; que seja mais cooperativa e menos plano de saúde, melhorando de forma responsável o recebimento do seu dono, o cooperado, e fazendo com que ele se sinta novamente em casa, amparado.
Tenho a plena convicção, que juntos, com espírito desarmado, com transparência e profissionalismo, garantiremos a sustentabilidade de todos os players e a segurança que tanto precisamos.
Haikal Helou é médico cooperado da Unimed e presidente da Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás (Ahpaceg)